Carregamos demasiadas emoções por este mundo fora. Por vezes, transcrevê-las em palavras, é a única forma de entender a sua essência. A escrita ajuda a ver a sua origem e permite uma convivência mais pacífica. Quando nos penteamos vemos o corpo no espelho, quando escrevemos sobre emoções, é a alma que se reflete.
Blog escrita criativa
A BOLA, A TERRA E O JOELHO
- Raio do cão!
- Ui. O que é que ele fez desta vez? – perguntou a filha, enquanto o pai entrava em casa.
- Um labrador é suposto ser esperto, certo?
- Pois, os catálogos dizem que sim – retorquiu, num tom jocoso, enquanto entravam ambos na sala e se sentavam no sofá.
- Olha que o Bolinhas está a mostrar-se uma perturbadora exceção.
- Então, mas o que é que ele fez?
- Aquilo que faz sempre que tento brincar com ele na rua – começou o pai, fechando os punhos, num ato que transparecia o exaspero que sentia. – Mal entro no quintal, o cão vem ter comigo a correr com a sua bola amarela na boca. Quando tento tirar-lhe o brinquedo para poder lançá-lo para que ele mo possa trazer de volta, o estúpido do Bolinhas não me deixa. Foge e fica a olhar para mim, com a cabeça inclinada para o lado. Para que ele aprenda que assim não consigo brincar, vou-me embora e ignoro-o. Mal viro as costas, o sacana faz sempre a mesma coisa: encosta a bola às minhas calças (que, como podes ver, acabam por ficar sujas de terra) e faz força contra os meus joelhos. Quando tento agarrar na bola, ele foge de novo. Claro que, acabo por me fartar e começo a ignorá-lo, mesmo quando ele me aleija com a porcaria da bola. No entanto, o cão, passado uns minutos, larga a bola aos meus pés e, aí, consigo apanhá-la e lançá-la.
- Então parece que afinal aprendeu.
- Isso também foi o que eu pensei! Mas quando o Bolinhas me traz a bola de volta, não a larga. Volta à brincadeira estúpida de me sujar os joelhos e, por muito que puxe a bola, o raio do cão não ma dá outra vez.
- Mas o que é que ele quer que tu faças? Ele ainda não percebeu que tu não gostas dessa brincadeira? – perguntou a filha, enquanto sentia o odor a comida que provinha da cozinha.
- Oh, deve querer que vá atrás dele certamente, ou que lhe puxe a bola, sei lá. Mas não consigo que o cão perceba que, assim, não gosto de brincar com ele mais a bola amarela cheia de terra. Este cão é mesmo estúpido…
Tal como acontecia todos os dias, às cinco da tarde em ponto, os quatro companheiros canídeos de Bolinhas saltaram o muro da casa, foram para as traseiras do quintal e abriram o alçapão que dava acesso a uma pequena sala com sandes de presunto e vodka à descrição. Os cinco cães adoravam aqueles momentos e aproveitavam-nos para desabafaram os seus problemas uns com os outros. Com a vodka à mistura durante as conversas, não havia nada sobre a vida de cada um deles que os amigos não soubessem.
- Estou mesmo desiludido com o meu dono – começou Bolinhas, enquanto se servia de uma sandes de presunto.
- Então companheiro, o que é que se passou desta vez?
- O mesmo de sempre – respondeu o cão, terminando num suspiro doloroso. – Não consigo que ele perceba as minhas brincadeiras. É suposto os humanos serem espertos, certo?
- Em princípio sim. Pelo menos, é o que os livros nos ensinam – respondeu o Buldog Francês, enquanto limpava, delicadamente, com um guardanapo, o excesso de baba que lhe pingava das beiças.
- Pois, o meu dono está a mostrar-se uma perturbadora exceção – disse Bolinhas, enquanto bebia, num gesto amargurado, um gole de vodka. – Acontece sempre da mesma forma. O meu humano chega a casa e eu fico eufórico por vê-lo. Vocês nem imaginam! Fico tão contente que pulo até me doerem os joelhos. Vou logo buscar a minha bola preferida para brincarmos os dois.
- A amarela? – questionou o Pinsher, num tom nervoso.
- Essa mesmo – confirmou Bolinhas, ligeiramente irritado pela interrupção. – Pois bem, vocês sabem que a minha brincadeira preferida é que me puxem a bola da boca, enquanto eu faço força no sentido contrário.
- Claro, quem é que não gosta disso?
- Exato! – exclamou Bolinhas, contente por ver que estava a ser compreendido. – O problema é que não consigo explicar-lhe a brincadeira. Eu levo-lhe a bola e, quando ele se baixa para agarrá-la, eu dou logo um salto para trás para obrigá-lo a fazer força. Mas o meu humano nunca consegue ter mais força que eu. E pior ainda, fica logo todo chateado comigo! Ignora-me e, às vezes, até se vai embora. Para tentar que ele perceba, encosto-lhe a bola no joelho para ver se a agarra de novo.
- Então, mas porque é que não lhe pões a bola aos pés? Se calhar o teu humano quer começar a brincadeira, sendo o primeiro a puxar.
- Eu fiz precisamente isso! Deixei cair a bola aos seus pés e sabem o que aconteceu? Agarrou-a e teve o descaramento de a atirar para o outro lado do quintal. Faz sempre a mesma coisa! E eu, até sou um cão paciente e tenho bom feitio, vocês sabem disso. – Um murmúrio de concordância espalhou-se pela cave. – Pois bem, ainda me dou ao trabalho de ir a correr buscá-la e, quando chego ao pé dele, o raio do humano volta a atirá-la para o outro lado do quintal.
- Então, mas o que é que ele quer? Ainda não percebeu que tu não gostas dessa brincadeira?
- Pois não sei – respondeu Bolinhas, infeliz. – E acaba sempre da mesma forma. Quanto mais tento explicar-lhe que quero que ele brinque de maneira diferente, menos ele percebe e, no final, ainda se dá ao luxo de ficar zangado comigo. Entra em casa a sacudir as calças e eu fico na rua a olhar para a porta. Este humano é mesmo estúpido…
16/10/2015