Carregamos demasiadas emoções por este mundo fora. Por vezes, transcrevê-las em palavras, é a única forma de entender a sua essência. A escrita ajuda a ver a sua origem e permite uma convivência mais pacífica. Quando nos penteamos vemos o corpo no espelho, quando escrevemos sobre emoções, é a alma que se reflete.
Blog escrita criativa
A MENTE ESCONDIDA NAS CINZAS
Memorial do Holocausto, Berlim
Uma leve brisa toca-me na face, conseguindo acordar-me. Inspiro fundo e imediatamente começo a tossir quando a cinza entra pelas nariz. A custo, abro os olhos e encaro a luz morna escondida por trás de um pano cinzento que paira no ar. A gemer, sento-me e observo o cenário que me rodeia. As dores nas costas, derivadas do forte embate ao cair no chão, são-me extremamente familiares. Um deserto a preto e branco forma o quadro onde me encaixo. Estou completamente sozinha. O silêncio é aterrador. Nem o berrar de um corvo se ouve. A cerca de 200 metros vejo um corpo deitado, sem se mexer. Estaria desmaiado ou não teria resistido à explosão? De vez em quando isto acontece. Do nada o mundo desaparece num súbito clarão e, neste cenário apocalíptico, próximo de um inferno frio, de guerra e calmaria, tenho que aprender a sobreviver. Procuro pelo meu cantil. A sede é tão forte e a garganta está tão seca que nem sei se conseguiria falar. Lá o encontro. Apenas tem água para três goles. Sei que terei que me levantar, procurar água, comida, pessoas que tenham sobrevivido. Mas estou tão cansada, a caminhada tem sido árdua. Abraço as minhas pernas magras tapadas por umas calças pretas bastante gastas e fito o infinito à procura de forças que penso ainda não ter perdido. Apercebo-me então que não tenho vontade de rir nem de chorar. Não sinto nada. Nem memórias tenho. De tão massacrada, fiquei vazia. É nesta calma sentimental e despojar de tudo que, no meio das cinzas, encontro paz. Trauteio para mim própria uma melodia tosca, com a voz rouca da garganta seca e encosto a testa no topo dos joelhos. Fecho os olhos com força e tento esconder-me dentro de mim mesma, aninhar-me nos pulmões e encostar a cabeça no coração. O passado de uma vida normal, família, amigos, trabalho e lazer é tão distante que começo a perguntar-me se realmente alguma vez existiu. Inspiro e expiro profundamente, numa estranha quietude, como se estivesse quase a adormecer na minha cama fofa. Mantenho-me nesta posição durante uns momentos, fingindo que me esqueço do perigo real que me persegue e da força física e mental que preciso de ter para sobreviver mais umas horas. De repente, o silêncio pára de me afligir, como se estivesse próxima da inexistência, a pairar alegremente no limbo entre a vida e a morte.
Subitamente, ouço um ruído ao longe. Levanto rapidamente o olhar e procuro perceber de que direção terá vindo o som. Parece uma voz a chamar o meu nome. Não posso ficar sentada para sempre. Por muito que quisesse viver aquela paz, tenho que cumprir o meu dever, e deambular em busca de uma missão, mesmo que isso signifique ter que sobreviver a mais explosões. É então que me levanto, sacudo a roupa, afasto o cabelo preto dos olhos, guardo o cantil dentro da mochila juntamente com a faca e a pistola e começo a correr. Nesta areia cinzenta, neste sol escondido, neste horizonte sem fim, nesta mente escondida.
8/05/2016