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Em Busca do Início de Tudo

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Parte II
Os Livros de Esmeralda

          Esmeralda fechou o livro pesado e fitou o horizonte que se estendia muito para lá da parede envidraçada da biblioteca. Finalmente conseguira juntar o conhecimento necessário para se lançar na maior demanda da sua longa vida. Apesar do aspeto jovem, Esmeralda começava a sentir o peso dos dois séculos de existência sobre os ombros. Enquanto soberana do povo élfico de Hyadara, dedicara a vida na busca de uma sabedoria insaciável. Quanto mais descobria, maior era a noção de tudo o que ainda tinha para aprender. Era provavelmente o ser mais sábio do Universo, e assim se mantinha graças à sua posição humilde face à ignorância que a perseguia. 

Fechou os olhos durante breves instantes, amargurada. Uma vez mais, veio-lhe à memória a última conversa que tivera com o filho.

          - Como te podes achar ignorante mãe? - perguntou-lhe Lótus, quando se deparou pela primeira vez com questões que a mãe não sabia responder - Tudo procuras, tudo estudas, tudo reténs. Tens em ti todo o conhecimento do nosso povo.

          - Navego persistentemente no limiar do conhecimento. É como se subisse uma montanha interminável. Por muito que me esforce, sei que nunca chegarei ao cume. Mas não faz mal - acrescentou, quando viu a face desiludida do filho - é a certeza de que há sempre mais para saber que me motiva nesta busca persistente. 

         - Um dia hei de tudo saber - decidiu Lótus, determinado.

         - Cuidado, meu filho. Para seres verdadeiramente sábio e um bom líder do teu povo, deves ter a humildade para aceitar que não há magia neste mundo que nos permita ter conhecimento absoluto.

          Abriu os olhos e deixou tranquilamente as lágrimas correrem pela pele esverdeada do rosto. Como gostaria de voltar atrás no tempo e perceber que o filho estava a percorrer o caminho errado… Na ganância de ser Senhor do Conhecimento, Lótus percorreu Hyadara de lés a lés, até que tomou a derradeira decisão de ultrapassar os limites do grande mundo élfico. Para lá da fronteira, no deserto morto de areias pretas, deparou-se com a bruxa Cava, que o convenceu de que era capaz de satisfazer o seu desejo. Cego de ganância, Lótus deixou-se levar na conversa daquela bruxa terrível. Cava convidou-o a entrar no seu covil e, mal teve oportunidade, aprisionou-o. Demonstrou a sua verdadeira intenção ao lançar-lhe um feitiço que lhe permitia roubar a vida das centenas de anos que o jovem elfo ainda tinha pela frente. Felizmente, Esmeralda conseguiu chegar a tempo de impedir que o feitiço se concretizasse. Quando soube que o seu precioso filho estava nas mãos da terrível Bruxa Cava, a rainha élfica cavalgou durante 3 dias e 3 noites. Para o conseguir salvar, Esmeralda teve que sacrificar a vida de Cava para o mundo de Hades. Porém, não conseguiu evitar a última maldição de vingança que a bruxa lançou sobre Lótus segundos antes de falecer. Depois das cinzas de Cava serem levadas pelo vento, Esmeralda tinha junto a si o corpo inanimado do filho. Não estava morto, respirava. Mas fora condenado a viver sem alma para o resto da vida. Não havia cura possível para tamanha maldição. Ou assim pensava.

          A primeira vez que ouviu falar do mundo do Início de Tudo foi através de um estranho vendedor nómada, viajante entre mundos, chamado Tomás. Regra geral, Esmeralda tinha uma atitude condescendente para com o conhecimento do Mundo dos Homens. No entanto, estava desesperada por salvar o filho. Se tal sítio existisse, haveria de o encontrar. Viajou por todos os recantos do mundo, falou com os maiores sábios do Universo e visitou todas as bibliotecas que encontrou. Ninguém sabia concretamente o que ela procurava, mas, pelos vistos, os rumores pareciam ter um fundo de verdade. Até que, naquele dia de céu nublado entristecido, Esmeralda encontrou o livro mais antigo dos tempos, que descrevia com detalhe a criação de tudo que conhecia. O papel estava muito frágil e a língua escrita em élfico antigo. Mas as respostas que procurava estavam lá.

          No princípio dos tempos, o Universo não passava de uma tela escura, com matéria orgânica e rochosa espalhada, desorganizada, a pairar. O criador, uma entidade que os elfos não conseguiam descrever ao certo o que era ou como surgira, decidiu viajar por aquela tela escura infinita e, recorrendo à sua Força uniu as rochas e criou os mundos, interligados por portais.  Fazendo uso da sua vasta Sabedoria, viu potencialidade na matéria orgânica e desenhou os primeiros seres vivos. A meditar na sua enorme Bondade, inventou as emoções e formou laços entre as criaturas que acabara de espalhar pelas terras. Com o tempo, os animais evoluiram para as diferentes espécies e reinos que Esmeralda conhecia nos dias de hoje. Ao longo de milhões de anos, a rocha mudou de sítio e a inteligência da matéria viva cresceu, dando à luz outras emoções e ações muito longe da Bondade original. O Criador tudo viu, tudo seguiu. Impotente para mudar o que quer que fosse, decidiu criar um novo mundo. Um mundo controlado apenas por ele, onde conseguisse manter a tela original, a magia positiva da sua criação. Este mundo tornar-se-ia conhecido pelo poder curativo das suas raízes, onde demónios e feitiços negros não teriam lugar. Alguns seres poderiam encontrar esse mundo e lá entrar. Mas, para isso, teriam que ter no seu íntimo mais profundo a trindade original: Força, Sabedoria e Bondade. Apenas dessa forma conseguiriam travar a grande batalha e merecer um vislumbre do Início de Tudo. Nas páginas seguintes estava detalhado o longo percurso entre portais até chegar à derradeira meta, onde raros eram aqueles que conseguiam sobreviver.

          De olhos abertos, fixos no horizonte para além da janela e de lágrimas secas, Esmeralda perdia-se em pensamentos. Agora que sabia que o Início de Tudo era real e como chegar até lá, apercebeu-se que o próximo passo seria garantir a união da Trindade. No livro não especificava se teria que encontrar as três potências num único ser. Ela era detentora de uma vasta sabedoria, tinha consciência de que provavelmente era o ser mais sábio de todo o Universo. Faltava-lhe encontrar a Força e a Bondade. Na sua comunidade, o que não faltavam eram fortes guerreiros leais à coroa. No entanto, Esmeralda não sabia se se manteriam do seu lado caso tivessem que escolher entre a própria vida e a busca de uma lenda para salvar a alma de Lótus. O povo élfico não era conhecido pela sua bondade e confiança cega, mas sim pela sua sabedoria, magia e beleza. Quem quer que a acompanhasse, teria que desejar tanto quanto ela atravessar a batalha final. Saiu da biblioteca com a mente vazia. Enquanto cavalgava de regresso a casa, pensou que nunca na vida precisara tanto de ajuda e que, ao mesmo tempo, nunca se sentira tão só.

          Ao chegar ao palácio, percebeu de imediato que algo de errado se passava. Os guardas estavam tensos e o resto do pessoal inquieto, com medo de lhe dirigir a palavra. Assustada, correu para o quarto de Lótus. Para seu alívio, mantinha-se a respirar. O corpo inerte, mas vivo. Intrigada, procurou o general supremo, que, apesar de nitidamente nervoso, de imediato lhe reportou o que se passava. Aparentemente, na patrulha matinal, dois soldados haviam apreendido uma humana nas imediações do palácio. Ao que constava, a humana era extremamente agressiva, quase conseguira fugir das mãos dos guerreiros elfos (algo incrível para um ser humano) e exigia falar com a Rainha para ser libertada imediatamente. Toda a história era extremamente invulgar e algo humilhante para os soldados elfos.

          - Diz que vai em missão para salvar a mãe, Majestade. Falou de um mundo mágico que tem folhas e água que curam tudo. Tudo alucinações, de certeza. Amanhã já a encaminhamos de novo para o Mundo dos Homens.

          - Mundo mágico… - sussurrou Esmeralda para si própria. Poderia mais alguém saber da existência de Início de Tudo? - General, leve-me de imediato até à rapariga!

          Atónito, mas sem se atrever a fazer alguma pergunta, o general encaminhou Esmeralda até às catacumbas do palácio. O soldado que guardava a cela da rapariga misteriosa tinha um olho inchado, o nariz a sangrar, o bico da orelha esquerda cortado e o orgulho manchado. Os olhares de Esmeralda e Rosa cruzaram-se pela primeira vez quando a Soberana se aproximou das grades.

       - Como foste capaz de ferir um dos meus soldados desta forma? Que magia usaste? - perguntou a Rainha, enquanto avaliava a musculatura demasiado desenvolvida da mulher. Força não lhe faltava.

           - A “magia” dos meus murros e pontapés - respondeu Rosa, num tom duro, mas orgulhoso.

           - Informaram-me que procuras uma cura para a tua mãe doente.

        - Sim, procuro… - depois de uma leve hesitação, decidiu dizer a verdade. Talvez aquele ser verde e altivo de orelhas bicudas soubesse alguma coisa - procuro o mundo Início de Tudo e não tenho muito tempo.

          Esmeralda ponderou durante breves momentos. Encontrava ali uma solução para parte do problema. Com sorte, talvez encontrassem a Bondade pelo caminho.

          - Muito bem - concordou Esmeralda. - Tenho uma proposta para te fazer.

      

26/04/2022

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