Carregamos demasiadas emoções por este mundo fora. Por vezes, transcrevê-las em palavras, é a única forma de entender a sua essência. A escrita ajuda a ver a sua origem e permite uma convivência mais pacífica. Quando nos penteamos vemos o corpo no espelho, quando escrevemos sobre emoções, é a alma que se reflete.
Blog escrita criativa
Bandarilhas em Tupperwares
A primeira vez que vi os vídeos e fotos dos galgos caquéticos, deixados ao abandono na propriedade do próprio tutor, deitados em molas que antes foram um colchão e com fezes a cobrir todo o pavimento, senti um intenso choque. Horrorizada, não conseguia parar de olhar, de analisar. As feridas, a atrofia muscular severa, a terrível tortura da fome e sede. Um nó formou-se na garganta e pestanejei de forma a esconder as lágrimas que se formavam. Não é preciso ser médico veterinário para entender, para ter empatia, para sentir o sofrimento daqueles animais. Quando li o texto da notícia, os meus olhos passaram rapidamente pelas declarações prestadas pelo acusado. Cito as que me ficaram retidas na memória: “Alguns estavam magros, mas não os tratei mal.”; “Já prestei as minhas declarações e estou em casa tranquilo e com a consciência tranquila. Não matei ninguém, não tratei mal os meus cães.”; “Quem me conhece sabe o quanto gosto de animais, de maus-tratos jamais me poderão acusar”. Certamente a transparecer um esgar horrorizado, afastei-me do ecrã do computador e deixei-me invadir pela náusea. Nem conseguia falar ou reagir de tão revoltada que estava. Como é possível alguém, perante aquelas imagens, dizer aquilo?! Nem uma pinga de remorso, de vergonha. Fala como se estivéssemos a viver realidades diferentes. Pensará que somos todos assim tão idiotas? Que perante os factos nos deixamos levar pela fanfarronice de peito cheio? Que abanando os braços cobertos de fatiotas com lantejoulas coloridas consegue levantar areia para cima dos nossos olhos e enterrar o sangue?
Posteriormente, mais calma, dei por mim a refletir. Não conseguia perceber o porquê daquelas declarações. São tão descabidas e afastadas da realidade, que me custa crer que quem as disse efetivamente acredita nelas. Várias hipóteses atravessaram-me a mente. “Também, o que é que o homem pode dizer?”, pensei, “Deve ser uma tentativa desesperada de se proteger. Talvez seja, simplesmente, uma recomendação do advogado de defesa?”. Não... continua a ser demasiado surreal. “Se calhar, efetivamente, não sabia em que condições estavam os animais e prestou as declarações antes de ver as imagens?”. Desta vez quase que ri de mim própria, da minha inocência. Os animais estavam na sua propriedade. Mesmo não sendo o próprio a dar comida ou a limpar as instalações, sabe com certeza se a comida é comprada ou se a pessoa que contratou está a fazer bem o seu serviço. Para além disso, ele deve ter sido das primeiras pessoas a ver as fotografias tiradas pela GNR. Ocorreu-me então a hipótese de o homem realmente acreditar naquilo que diz. Mas como é que ele pode achar que gosta, quando não cuida? Como é que não consegue ver que a fome e a sujidade indigna são maus-tratos? Como não se sente arrependido pelo horror dos seus atos? Subitamente percebi que a única hipótese é não ver os animais como capazes de sofrer ou não entender que eles conseguem sentir dor emocional e física tal como os seres humanos. Se esquecermos a empatia e conseguirmos reduzir um cão, um cavalo ou um touro a um objeto animado, então a realidade é efetivamente diferente. Ele gosta dos seus animais quando os considera bonitos, quando servem um propósito por ele considerado nobre e de elite, quando são o fruto do seu sustento. “Se calhar não desenvolveu empatia, simplesmente não é capaz de gostar de um animal pelo que é, mas apenas por aquilo que lhe consegue dar.”
Olhei em volta para o que me rodeava e mirei a minha marmita com um certo interesse. Pensei no jeito que me dá ter tantas caixas de plástico de boas dimensões para carregar o almoço todos os dias para o trabalho. São bons tupperwares. Têm a forma certa, encaixam perfeitamente uns nos outros, nunca me falham. Quando os uso, sinto-me sempre feliz, pois carregam o meu motivo de alegria da hora de almoço. Lavo-os depois de os usar e até sou capaz de os arrumar com cuidado no armário quando gosto particularmente de algum. Enquanto estão novos, uso-os com frequência. Se perder algum, até sou capaz de me sentir algo irritada ou zangada. Mas é sempre temporário, pois posso comprar outro mais tarde. Quando perco uma tampa, a caixa acaba por ficar esquecida no fundo do armário. Quando algum se parte, nem penso duas vezes, vai para o lixo. Preocupo-me se estão todos bem arrumados? Se há algum torto? Se não os uso vezes suficientes? Se ficam esquecidos em algum canto da minha casa? Não. Claro que não. São bocados de plástico. O que respondo se me perguntarem se gosto de tupperwares? Sim gosto, claro que sim. Até sou capaz de ficar zangada se partir ou perder algum! Se me preocupo com o seu bem estar? Bem, dentro do cuidado que é preciso ter com um pedaço de plástico sim, preocupo-me. Se sou capaz de mal tratar um tupperware? Que pergunta ridícula. Claro que não. Levo lá dentro o meu almoço. Tenho sempre que garantir que estão bem limpos e que não caem ao chão com facilidade. Quem me conhece sabe que não estrago caixas de plástico por dá cá aquela palha! Ainda por cima agora que me preocupo mais com questões ambientais.
Então, agora chegou a altura de fazermos aqui um exercício. O que acontece se agarrarmos em todas estas perguntas e substituirmos as palavras tupperware, marmita e caixa de plástico por cão, cavalo e touro? Não esquecer que apenas substituímos a palavra, o sentido e a relevância do objeto continuam a ser os mesmos. Fazendo esta analogia, vejo uma luz que julgo ser capaz de me ajudar a entender a cabeça desta gente. Sim, eles gostam de animais. Eles gostam de animais da mesma forma que eu gosto dos meus tupperwares. Tendo isto em conta, aquelas declarações ao olhar para galgos caquéticos, não só são plausíveis, como desprovidas de qualquer surpresa. Quando eu olho para um animal, vejo um indivíduo com personalidade própria, sensível e com direitos neste planeta. Quando eles olham para um animal veem um desporto, uma arte, uma fonte de rendimento, uma forma de cultura.
Nem todos temos que gostar de animais da mesma forma. Nem toda a gente quer ter animais em casa, tem particular carinho ou sente falta da sua companhia. Mas está tudo bem, nem todos temos que ser amantes de animais. Porém, temos que saber reconhecer o seu sofrimento. Quem tem animais tem a responsabilidade de lhes garantir acesso a comida, água, espaço limpo, ambiente livre de stress e cuidados de saúde. E isto, a meu ver, é válido tanto para animais de companhia como de exploração. Perante a lei e a nossa conduta moral, menos do que isto é considerado maus-tratos! A maneira como a sociedade trata e vê os seus animais, define-a. Tendemos a crescer no sentido de uma sociedade cada vez mais evoluída. Temos todos o dever de palmilhar este caminho em conjunto.
25/02/2020