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HOJE ATÉ A LUA SE ESCONDE POR TRÁS DAS NUVENS

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          Sou médica veterinária de clínica de animais de companhia. De uma forma sumária, o meu trabalho consiste em dar consultas a animais de forma a conseguir chegar ao diagnóstico (de preferência correto, naturalmente) e, de acordo com aquilo que vejo e ouço, perceber qual o melhor tratamento a seguir. Acompanhar o animal ao longo da doença, sempre com o objetivo de atingir o estado de saúde ou o mais próximo possível disso. Sem ver o bicho, pouco ou nada consigo fazer. A nível de receção, apenas posso ouvir e aconselhar. Sem ter o meu paciente por perto, consigo esclarecer dúvidas e dizer se preciso efetivamente de o ver ou se basta levar um ou outro medicamento que não necessite de receita médica. Algo que saia fora destas diretrizes, de uma forma geral, vai contra o código deontológico e é, efetivamente, falta de profissionalismo. É verdade que vir ao veterinário custa dinheiro. Mas experimentem comparar os nossos preços com os de um hospital privado de medicina humana e vão ver que, se calhar, até vendemos o nosso trabalho bastante barato. Sempre que entram num consultório, têm à vossa frente um médico de clínica geral com conhecimentos profundos de medicina interna, enfermagem, análises laboratoriais, imagiologia e cirurgia (no mínimo!). Se calhar o nosso tempo e opinião merecem ser pagos. Tudo isto parece-me relativamente simples de entender e fácil de cumprir.

         Porém, há pessoas por este mundo fora, que não conheço de lado nenhum, que acham que conseguem vir ter comigo, na receção, sem trazer o animal (que nunca vi na vida), sem pagar consulta, com uma descrição da doença e esperar prescrições de antibióticos e afins. Nessas situações, explico, com muita calma, que não posso prescrever sem consulta (“é como nos médicos das pessoas, sabe?”), que preciso de o ver para saber com o que estou a lidar e que passar tratamento sem saber a causa e sem acompanhar, posso não só não ajudar como agravar o estado de saúde do animal em questão. Admito que me começo a irritar quando a tal pessoa decide, contra todo o bom senso, insistir. Não há problema, eu explico uma vez mais (“certamente não terá entendido”). Depois inicia-se em mim um processo de ebulição quando a pessoa começa a discutir comigo, a dizer que não tem como pagar consulta ou como trazer o animal. Uma dessas pessoas, na tentativa de ter um antibiótico qualquer para um gato que “não come há três dias”, chegou mesmo a dizer-me: “Doutora, este mês não consigo pagar consulta porque o meu carro teve que ir ao mecânico e eu estou com muita despesa.” Só meu deu vontade de perguntar: “Então porque é que não vai antes choramingar o preço ao mecânico por causa das despesas que tem no veterinário?”. No entanto, mais uma vez, não há problema. Eu explico tudo novamente, referindo que se quer a dispensa de um medicamento sem consulta médica, pode sempre dirigir-se à farmácia mais próxima. Infelizmente, às vezes, a pessoa acha que tem o direito de me dizer que, assim sendo, o animal em questão vai permanecer doente e talvez morrer por culpa minha. Porque eu não lhe passo ali um medicamento do ar… Nesses momentos salta-me a tampa e eu tenho que reunir todas as minhas forças para manter uma postura calma e correta, quando o que a pessoa merecia era que eu lhe dissesse… Bem, nem vou escrever aqui o que me apetecia dizer porque se não entro no campo da linguagem brejeira e ofensiva. É então que me vejo forçada a explicar que aquele animal não é da minha responsabilidade (ai de mim se fosse assumir a responsabilidade de todos os animais de donos que não os querem trazer para serem consultados por mim!), e que sem o ver, lamento, mas não consigo ajudar ninguém. É uma situação feia, é chantagem emocional e uma falta de respeito enorme por mim e pela minha profissão. Não andei a estudar afincadamente durante seis anos para aturar merdas destas! “Vão desrespeitar o profissional da capelinha ao lado, por favor, que por mim já chega.”

          A pessoa depois vai-se embora, convencida de que eu tenho má vontade, que só penso em dinheiro, que não quero ajudar. Mas é assim a vida. É difícil dar a volta a pessoas tão estúpidas e pequeninas. Infelizmente não consigo evitar sentir um sabor azedo na boca e uma dor de estômago acutilante. Odeio essas pessoas. Odeio-as por me virem dizer que têm um animal doente em casa sem me permitirem ajudá-las, odeio-as por me desrespeitarem e, por fim, odeio-as por terem decidido adotar um animal sem quererem arranjar maneira de pagar pelos meus serviços. Passo a minha vida a trabalhar fins de semana inteiros e a fazer horas extra sempre que necessário, a tentar ajudar a nível de orçamentos quando posso, a expor aquilo que sei (muitas vezes sem cobrar) numa prespetiva de ajudar e educar… Não choro o que faço, porque o faço de boa vontade e sempre por amor à profissão e à bicharada. Por isso custa-me este tipo de discursos de pessoas que dizem amar os animais, mas, quando é preciso efetivamente tratar deles, recusam-se a pensar em soluções e rapidamente mascaram de si mesmas a sua consciência pesada culpando o desgraçado do veterinário que também tem contas para pagar e vida para além das paredes da clínica.

            Felizmente, a maior parte dos donos são o oposto daquilo que descrevo e fazem com que valha a pena aturar estes disparates esporádicos. Tudo o que incha, desincha. É depois ao chegar a casa que suspiro, dou comida e mimos às minhas gatinhas e vou para a janela procurar esperança na lua cheia escondida por trás do céu carregado de nuvens pretas.

 

11/05/2017 

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