top of page

Mil Folhas de Escuridão

IMG_20190204_111844.jpg

          Abri a persiana e contei os cadáveres ensanguentados que jaziam no meio da terra. Eram tantos quanto os do dia anterior. Atentamente, perscrutei o silêncio. Fechei os olhos e enruguei a testa quando me invadiu o cheiro fétido da putrefação alheia. Escondíamo-nos ali há demasiados dias. O ambiente parecia calmo, como se tivesse caído numa tela de natureza morta. O silêncio trazia uma sensação falsa de segurança. A criatura já não aparentava estar por perto. Era altura de partir. Se queria sobreviver, não podia ficar parada, à espera. Aqueles corpos no chão, em vida não foram suficientemente rápidos. Tinha de procurar comida, novo refúgio e manter a esperança de encontrar outros sobreviventes. 

          Subitamente, um mil-folhas desenhou-se-me na mente e a memória vaga do seu sabor levou-me quase a sorrir. A textura, o som da dentada na massa folhada, a sensação calorosa de uma onda de açúcar… Que memória tão distante e, no entanto, tão viva. Por vezes, são os desejos banais que parecem dar a motivação necessária para continuar a lutar. 

         Desci as escadas até à entrada do bunker, onde se escondiam duas crianças aterrorizadas. Os irmãos partilhavam os olhos azuis da minha irmã, os lábios finos do meu cunhado e o meu cabelo loiro. As caras sujas pela falta de água, as unhas pretas, a pele da face engelhada por lágrimas secas. Os corpos magros pela alimentação racionada e falta de apetite pelo stress. Via nos seus olhos as emoções que não me permitia ter. Os seus corpos, um reflexo do meu.

         - Vamos, meninos. Temos que sair desta casa. - ordenei, tentando manter o tom de voz o mais carinhoso possível.

         - Tia, vamos encontrar o pai e a mãe? - Já perdera a conta de quantas vezes me tinham feito aquela pergunta. 

        O coração escondido numa carapaça emocional impediu-me de soltar lágrimas, ou sentir pena. O sabor longínquo do doce de ovos aflorou a minha boca e consegui, uma vez mais, proferir as palavras que precisavam de ser ouvidas:

       - Claro que sim - menti, sorrindo. Eu era a sua única chance de sobrevivência. Não queria que perdessem a vontade de me acompanhar. - Agora vamos!

        Saímos da casa quase arruinada e entrámos no jipe preto, sem olhar para trás. Era uma regra muito importante: para onde quer que fosse, nunca olhar para trás. Quando o ruído do motor se fez ouvir, o som de um rugido longínquo projetou-se no ar e deixei-me invadir por um calafrio doloroso. O perigo, afinal, ainda estava demasiado perto. Carreguei no acelerador e os vidros ficaram sujos pelo pó da areia que os pneus levantaram. O solo tremia com os passos cada vez mais próximos. As crianças gritavam, o motor do carro em esforço fazia um som terrível. De repente, um vulto preto saltou por cima do jipe e estacou em frente dos nossos olhos. Travei a fundo e contive um grito de horror. Estávamos encurralados. Porém, perante a morte iminente, senti a mente fria. Talvez a força do carro fosse suficiente. Talvez… Inspirei fundo e fechei os olhos. Ignorando o choro das crianças, voltei a saborear o mil-folhas e carreguei no acelerador. 

 

11/01/2020 

        

bottom of page