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O PRESUNTO, A VODKA E O JOGO

          - Nem vais acreditar na consulta que acabei de dar! – exclamou a veterinária para a colega, enquanto se sentava na secretária da sala comum.

         - Então, outro maluco? – perguntou, com a boca cheia de uma sandes que tentava comer o mais rapidamente possível.

        - Sim, mais um para a coleção. E olha que este é dos bons! – retorquiu, enquanto escolhia a melhor maneira para contar o absurdo que acabara de presenciar. – A sério. As nossas histórias davam uma coleção infinita de livros.

        - Pára lá de preambular que eu, daqui a meia hora, tenho uma consulta e ainda tenho que acabar de escrever estas fichas – apressou a colega, enquanto engolia em seco o último pedaço de pão.

        - Ok, ok. Então foi assim: entra-me pelo consultório dentro um senhor, assim de meia-idade, com um labrador. Nós estamos habituadas a ver labradores rechonchudos, mas este estava mesmo com um peso louco. Obesíssimo! Ia começar o meu discurso para sensibilizar o senhor relativamente aos problemas articulares e cardíacos que o seu cãozinho ia desenvolver cedo de mais, quando ele me interrompe. E, com um ar, assim, decidido e de grande entendedor, diz-me logo: oh senhora doutora, eu já sei isso tudo. É verdade, o meu cão está muito gordo, mas eu não sei o que fazer. É que eu não lhe dou nada para além da comida dele e o sacana do Bolinhas não pára de engordar!

        - Também, dá um nome desses ao cão e está à espera que ele seja magro? – perguntou a colega, num tom jocoso.

       - É verdade – retorquiu a médica, entre risos. Por fim, voltou rapidamente à seriedade. – Mas coitado do senhor, eu estava com pena dele. Eu não o conheço muito bem, foi a primeira vez que o vi, mas pareceu-me boa pessoa. E tem ali um problema com o Bolinhas. Foi então que sugeri que fosse fazer umas caminhadas com o cão, dia sim, dia não e que aumentasse progressivamente o exercício. Ao qual ele me respondeu: oh senhora doutora, todos os fins-de-semana levo o Bolinhas a passear pela serra e a minha mulher vai fazer uma caminhada com ele três vezes por semana, durante uma hora. Veja-me lá, se isto não é estranho!

            - Sim, realmente isso é tudo muito estranho. Mas não faz dele maluco.

         - Pois, até aqui estava tudo bem. Agora é que começa a parte boa. Não é que o senhor decidiu prender uma câmara à coleira do cão para ver o que é que ele fazia durante o dia?!

         - Ai, que fantástico! – exclamou a colega, enquanto ignorava o trabalho que se estava a acumular na secretária. – Aposto que viu um vizinho a dar-lhe comida.

           - Não, não! Isso é o que ele esperava ver. No entanto, começou a contar-me uma história muito estranha. Disse que o cão não conseguia emagrecer, porque ia para uma cave no quintal, que nenhum humano conhece, comer sandes de presunto e beber vodka com os outros cães da rua! E mais! – rematou a médica, com um dedo espetado, mostrando que estava a atingir o apogeu da sua história do dia. – Os cães estavam todos a jogar xadrez!

            - Não pode!

            - Não só pode, como ainda me trouxe um CD com o vídeo a provar tudo aquilo que me disse. Oh, eu já sabia que a senhora doutora não ia acreditar em mim, então adiantei-me e trouxe-lhe uma prova.

            - Temos que ver isso! Põe aqui já no meu computador, que está ligado.

           A médica assim o fez. Ansiosas e mortas de riso, as veterinárias sentaram-se uma ao lado da outra, em completo silêncio e extremamente concentradas. Não queriam perder um único segundo. É então que o vídeo é aberto numa janela no ecrã e vê-se toda a ação por cima da nuca do Bolinhas.

           A primeira imagem que surge, é o dono do labrador a prender e a ajeitar a câmara na coleira do cão. Depois do senhor e o resto da família saírem de casa, Bolinhas vê o resto do dia e do quintal por sua conta. A meia hora que se seguiu consistiu no Bolinhas a correr, a rebolar na relva quando estava cansado, a beber água, a comer ervas, a vomitar ervas, a comer o vomitado das ervas e a vomitar o vomitado das ervas. Depois, retornou ao alpendre da casa, enquanto ladrava para os outros cães durante outra meia hora. Por fim, quando as médicas já estavam prestes a desistir de ver todo o vídeo para não perder mais tempo, aperceberam-se de um conjunto de quatro cães que saltaram o muro e entraram para o quintal do Bolinhas. Todos juntos, correram para as traseiras, olharam uns para os outros e para o ambiente que os rodeava. Quando se aperceberam que ninguém os observava, um deles esticou a pata e abriu um alçapão que estava coberto de ervas. Rapidamente desceram ao subsolo e ligaram a luz, para conseguirem ver alguma coisa.

          - É pá, estas sandes de presunto são mesmo boas – disse o cão mais pequenino, enquanto agarrava num pão com as duas patinhas e dava uma dentada.

            - É isso e esta vodka maravilhosa! – exclamou o outro, enquanto chupava, por uma palhinha, diretamente da garrafa.

            - É isso tudo e podermos falar à vontade. Isto de só ladrarmos e uivarmos à frente dos humanos é mesmo cansativo. Porque é que fazemos isso, mesmo?

           - Sei lá – respondeu Bolinhas, com a boca cheia com duas sandes – o que eu sei é que já não aguento aquelas caminhadas todas. Depois desta tarde, tenho que começar a cortar no presunto.

          - Olha, enquanto cortas e não cortas no presunto, anda cá jogar uma partida de damas comigo, Bolinhas.

            - É para já!

        Os dois cães prepararam o tabuleiro com as peças brancas e pretas. O Bolinhas colocou a pata sobre uma peça e arrastou-a…

           - Aha! – gritou a médica, subitamente, num tom vitorioso. – Eu sabia que o homem só me podia estar a pregar uma grande peta! Disse-me que estavam a jogar xadrez, mas na verdade são damas!

           - Claro! – reforçou a colega, enquanto tentava falar entre os risos. – Como é que um cão conseguia agarrar nas peças de xadrez para as movimentar?

           - É verdade. As pessoas inventam cada coisa…

11/06/2011

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