Carregamos demasiadas emoções por este mundo fora. Por vezes, transcrevê-las em palavras, é a única forma de entender a sua essência. A escrita ajuda a ver a sua origem e permite uma convivência mais pacífica. Quando nos penteamos vemos o corpo no espelho, quando escrevemos sobre emoções, é a alma que se reflete.
Blog escrita criativa
Palmela em Chamas
Ontem vi Palmela em chamas. A minha querida Palmela. Nunca testemunhei algo deste género de tão perto. Estava em cirurgia quando ouvi as primeiras novidades. “A estrada da cobra está a arder.” Continuei tranquilamente o meu trabalho, inconsciente da tarde que teríamos que enfrentar. “Já tiveram que evacuar o infantário.” “O fogo segue para a Baixa de Palmela”. O som dos helicópteros começou a ouvir-se. Foi então que a preocupação gritante cresceu. Percebi que as chamas não estavam sob controle. Conseguiria voltar a casa? Na hora de almoço, a caminho de Aires, comecei a ver estradas cortadas. Mas o cheiro a fumo ainda não era intenso. O vento levava as cinzas para a zona da Lagoinha, diziam. “Evacuaram a Escola Secundária de Palmela”. “Os Belos estão a arder”. “As estradas que vêm da Quinta do Anjo estão fechadas”. Felizmente consegui voltar para a clínica depois de almoço. Ao virar a esquina para entrar na rua da Igreja de Aires, olhei para a serra e vi. Vi tudo. Era uma imagem surreal. As labaredas altas e o fumo a tapar o castelo, a vegetação preta, já morta pelas chamas. Senti um aperto no coração e, pela primeira vez no dia, fiz um esforço para reter as lágrimas. Nunca tinha visto nada assim. O nosso Castelo, estava em perigo. A nossa querida vila medieval no alto da colina, passava pelo Inferno. Não sou religiosa. Mas, naquele momento, fiz uma prece para que os corajosos bombeiros nos conseguissem proteger. Subi as estradas da vila até chegar ao meu posto de trabalho. Ao início da tarde, a nossa prioridade era dar alta aos animais internados que estavam estáveis para passarem o resto do dia em casa. Como a clínica é demasiado perto do Castelo e víamos as chamas da porta, tínhamos receio de ser evacuados a qualquer momento. Todas as consultas foram desmarcadas para termos a possibilidade de começar a aceitar animais traumatizados pelo incêndio. “Este animal tem que levar antibiótico e anti-inflamatório para casa”. “Já conseguiste falar com os donos da cadelinha?”, “Este, temos que fazer um penso”. “A polícia não os deixam passar?! Tem que tentar outra estrada, ela tem que ir para casa já!”. “Este gato tem que ser alimentado pela sonda antes de sair daqui”. “A polícia quer uma declaração.” Muito bem, é só agarrar-me ao computador durante 5 minutos.
Foi então que começaram a aparecer animais traumatizados em urgência. Os bombeiros, funcionários da câmara, voluntários das associações e veterinários da zona estavam a postos para ajudar os mais indefesos. Também vivíamos o pânico do que haveríamos de fazer aos animais recolhidos se fossemos forçados a evacuar. “Um problema de cada vez.” Enquanto tratávamos dos animais que chegavam, ouvíamos os relatos do incêndio. E era assustador. As chamas alastravam-se pela serra, em zonas que os bombeiros não tinham acesso, as fotos que apareciam nas redes sociais eram aterradoras e o fogo e fumo que víamos à porta da clínica nas pausas do trabalho era surreal. “O McDonald’s está em risco”. “A preocupação é a bomba de gasolina, o fogo está demasiado perto”. “O fogo já chegou a Aires”. “Estão a evacuar as pessoas de Aires”. Os meus pais estão em Aires. Merda. Senti um calafrio. Pela quarta vez no dia, retive as lágrimas. Decidi fazer um telefonema rápido aos meus pais enquanto tratava de um gatinho bebé com as almofadinhas plantares todas queimadas. “Está tudo bem, filha. O fogo ainda não está próximo daqui. O teu pai está a regar a casa, por precaução”. Respirei fundo de alívio e voltei a concentrar-me no trabalho que tinha em mãos. Ver um animal queimado é duro. O sofrimento em frente dos nossos olhos é demasiado. A primeira coisa que fazemos é medicar para as dores ou preparar uma sedação. Depois, limpar as feridas, desinfetar e colocar produtos cicatrizantes. Seguidamente, iniciar antibioterapia, colocar cateter, hidratar. Aquecer se entrarem em choque hipotérmico, arrefecer se entrarem com pico de calor. Quando é mais grave, sabemos que podem não resistir. Há outras descompensações possíveis, nomeadamente a nível renal. Mas tenta-se sempre. Vi chegar um camião de Algés e outro de Sines. Percebi que os bombeiros de Portugal estavam a chegar a Palmela para nos ajudar. Senti uma forte onda de agradecimento, aos corajosos homens e mulheres que se deslocaram de tão longe para ajudar a salvar a minha querida terra.
A tarde de aflição passou. Os animais deixaram de entrar. As associações conseguiram organizar o trabalho graças à boa vontade e generosidade das pessoas e profissionais de saúde animal. As chamas ficaram controladas, pelo menos, por enquanto. Pouco depois da hora do jantar, chegou à clínica um reforço da equipa e aproveitei para seguir para casa e garantir que estava tudo bem com a minha família. Muitas estradas ainda se mantinham cortadas. Não estávamos completamente fora de perigo. Fui por outros caminhos menos conhecidos e lá cheguei, sem fome, inerte, com as emoções a pairar num limbo neutro, as imagens do fogo ainda a dançar atrás das pálpebras sempre que fechava os olhos e a sentir a força das minhas colegas que ainda ficaram a vigiar os animais internados e prontas para receber outros que precisassem da sua ajuda. Se não estamos nesta profissão por amor, então já não sei o que é amar.
Hoje de manhã, no rescaldo do incêndio, espreitei a Serra e o coração ficou novamente pesado. Já não vi chamas, mas o mar negro que pinta a encosta do Castelo deixou-me triste. Quanto tempo vai demorar até ficar tudo verde de novo? Quanto tempo teremos que esperar até os bombeiros poderem descansar? Foi então que, numa nota mais alegre, me lembrei de todos aqueles que, no meio de todo este caos e perigo, deram prioridade aos animais. Foi comovente a quantidade de pessoas que entraram pela clínica trazendo cães e gatos que resgataram das chamas, ou carregadas de ração para quem precisasse ou que viessem, simplesmente, perguntar de coração aberto, o que podiam fazer para ajudar. E neste sentido, faço um apelo para quem puder, ajudar os animais de Palmela. Precisam principalmente de ajuda monetária para pagar os medicamentos e despesas médico-veterinários. A informação toda necessária está na imagem. Vamos ajudar os animais de Palmela!
14/07/2022