Carregamos demasiadas emoções por este mundo fora. Por vezes, transcrevê-las em palavras, é a única forma de entender a sua essência. A escrita ajuda a ver a sua origem e permite uma convivência mais pacífica. Quando nos penteamos vemos o corpo no espelho, quando escrevemos sobre emoções, é a alma que se reflete.
Blog escrita criativa
TO BE OR NOT TO BE
Amsterdão, 2014
As memórias por vezes assaltam a mente, nem sempre na necessidade de um motivo aparente. No meu caso, aparecem na forma de imagens e sons, como se estivesse a ver filmes antigos num ecrã de televisão. A acompanhar essas imagens vêm as emoções que se manifestaram no momento. Quando as memórias são más, esses assaltos na mente podem ser dolorosos, difíceis de ultrapassar. Mas quando são boas, tento sempre estender ao máximo essas entradas sem convite. Hoje, sentada no sofá, recordei vários momentos do interrail que fiz pela Europa em 2014. Foi um dos meses mais felizes da minha vida, com os seus altos e baixos, mas de uma educação rica e cheia de surpresas. Julgo que um dos pontos mais importantes quando se sai do nosso cantinho à beira mar é a observação e o contacto com as pessoas e culturas dos países que visitamos. Sentada no sofá, recordei vivamente os três dias que passei em Amsterdão, para mim a cidade da liberdade, no verdadeiro sentido da palavra. Quando passei por lá, tive a sorte de ver as celebrações do dia do Gay Pride. A alegria era contagiante e via-se de tudo. Durante aquele dia, toda a gente tinha a oportunidade de manifestar o seu true self. E não creio que haja maior liberdade no mundo que essa. Poder desmascarar o nosso verdadeiro “eu” sem julgamentos, sem as pessoas serem encaradas como anti-natura. Ouço histórias complicadas de homossexuais que não são aceites pelas suas famílias, de transexuais que são considerados aberrações e são postos de parte pela sociedade.
Muitas vezes faço um jogo comigo própria, na tentativa de calçar os sapatos de outras pessoas. Basicamente faço o auto-retrato, inverto as situações e depois coloco as perguntas. Ora bem, eu sou mulher, branca e heterossexual. E se eu vivesse num mundo em que me punham de parte por ter estas características, que são a base que me define? Se vivesse num mundo em que a heterossexualidade era o fator em minoria, o que faria? Procuraria relações com mulheres apesar de não ser o que me atrai? Iria culpabilizar-me por me sentir atraída por homens bonitos? Iriam criticar-me pela forma como nasci, dizendo que foi uma escolha imoral? Quão infeliz teria que ser para me enquadrar? E se as roupas que gosto de usar fossem consideradas aberrantes e me forçassem a vestir saias, vestidos e calças com formas e cores que não me definem? E se, num mundo paralelo, fossem os negros que dominassem o racismo? As pessoas poderiam olhar para mim e considerarem que era menos inteligente ou desconfiarem de mim por ser branca? Enquanto médica, nunca percebi como é que a quantidade de melanina na pele consegue dominar as capacidades do cérebro. Mas há pessoas que acham que tem uma correlação fortíssima. Imagino que não poder ser eu mesma, provocaria uma constante luta interna, em que acabaria por seguir o que me deixa infeliz e sentir-me constantemente culpada por saber que, no fundo, nunca seria o que esperavam de mim.
A liberdade tem várias formas, é vista e definida de maneira diferente pelas pessoas e culturas mundo fora. Para mim, a verdadeira definição de liberdade é podermos ser nós próprios, sem julgamentos, desde que, claro, não sejamos violentos ou desrespeitosos. Manter o Peace and Love é a chave de tudo isto. Se um homem se sente bem por usar maquilhagem e uma saia, porque não o há de fazer? Se alguém se sente infeliz com o sexo com que nasceu, porque é que não o há de mudar? Não estão a magoar ninguém. Estão é a ser magoados quando lhes negam a necessidade ser quem na verdade são, apenas por puro preconceito. Neste mundo ainda intolerante, ser diferente exige muita determinação. Admiro quem tem a coragem de viver plenamente na sua pele, apesar de outros acharem incorreto e criticarem por não serem o que é suposto. No fundo, nada mais é que a luta pela pura felicidade.
De volta a Amsterdão, a caminho do hotel, acompanhada da minha amiga, procurávamos o trajeto mais curto por entre a multidão das celebrações do Gay Pride. A minha expressão era séria, queria concentrar-me para não me perder. A certo ponto, fui de encontro a um senhor de meia idade, que vestia uma T-shirt muito justa e uns calções demasiado curtos. Olhou para mim, agarrou-me nos ombros, e, em vez de reclamar por ter embatido bruscamente contra ele, sorriu-me e mirou-me carinhosamente com os seus olhos azuis. “Smile!” pediu-me. “Happy Gay Pride!”. Apercebi-me que deixava passar um momento importante da viagem, de tão concentrada que estava em descobrir o caminho para o hotel. Fiz o que me pediu. Sorri-lhe de volta e ali, naqueles breves segundos em que sorrimos genuinamente um para o outro, senti uma ligação forte de alegria com aquele desconhecido. É um momento que nunca esquecerei. A alegria que contagiava as ruas e, inevitavelmente, o meu coração, vinha da verdadeira aceitação. A tolerância passa por aceitarmos os outros e, principalmente, a nós próprios. Citando brevemente Lady Gaga “I'm beautiful in my way, 'cause God makes no mistakes, I'm on the right track, baby I was born this way.”
Acho que caminhamos lentamente, mas no sentido certo. Tenho esperança que, num futuro que não sei quando chegará, possamos olhar uns para os outros e dizer simplesmente “Smile!”
22/06/2019