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Um Dia Como Qualquer Outro

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Por vezes, o inesperado está mesmo em frente dos nossos olhos. Apenas se transforma numa surpresa porque nos esquecemos de olhar na direção certa.

          Augusto era um homem pacato, de aparente felicidade neutra. Já perto dos cinquenta, vivia o dia a dia numa rotina tão bem ensaiada que o pano já se abria e fechava sozinho a cada espetáculo. Trabalhava num escritório, transitando papelada de um departamento para outro. Era simpático e sempre muito delicado. Todos gostavam dele, sem na verdade o conhecerem. Já não havia surpresas no seu caminho, uma estrada sem buracos e nem uma curva à vista. Certo dia, saiu do trabalho e desejou um bom fim de semana, com um sorriso nos lábios, a todos com quem se cruzava. Ao chegar a casa, foi alimentar os peixes enquanto imaginava o resto da sua vida. Não tinha dúvidas de que não seria mais do que aquilo que já era. Calmamente, preparou o jantar, ao som de cool jazz. Não tinha filhos, poucos eram os amigos que se preocupavam com ele. A mulher, por quem nutrira um amor tranquilo, morrera havia dois anos. Desde então, partilhava os dias com os seus peixes e os romances que contavam histórias de vida que ambicionara ter e que agora sabia ser tarde demais. Tirou do frigorífico uma garrafa de vinho branco e sorriu. Ao bebê-lo iria experienciar o ponto alto do dia. Comeu, saboreando cada garfada como se fosse a última. Por fim, quando se sentiu saciado, pousou os talheres e foi fumar um cigarro para a janela. A brisa fresca de outono acariciou-lhe a face e sentiu que chegara o momento. Deixou-se invadir por um entusiasmo que julgava perdido e sentou-se no peitoril da janela com as pernas viradas para o abismo. Com lágrimas nos olhos, sorriu. Finalmente, alguma aventura! Sustendo um grito, deu um impulso e saltou. Na morte, viu-se livre. Na morte, voltou a encontrar-se. No momento da morte, saboreou a vida.         

 

26/01/2020 

        

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