Carregamos demasiadas emoções por este mundo fora. Por vezes, transcrevê-las em palavras, é a única forma de entender a sua essência. A escrita ajuda a ver a sua origem e permite uma convivência mais pacífica. Quando nos penteamos vemos o corpo no espelho, quando escrevemos sobre emoções, é a alma que se reflete.
Blog escrita criativa
Um Dia Normal Num Mundo Com COVID-19
Acordei estremunhada, bem disposta por estar a despontar um novo dia. Bocejei preguiçosamente e esfreguei os dedos nos olhos. Subitamente, com o cérebro mais desperto, voltei a tomar consciência da realidade surreal que vivemos e senti um pequeno pânico por ter levado as mãos aos olhos. Foi então que um pensamento me tranquilizou: “ontem, antes de te deitares, desinfetaste as mãos. Coça os olhos à vontade mulher!”. Deixei as minhas gatas aproximarem-se e beijei-as, relembrando-me que todo o carinho que preciso de dar tem que ser direcionado unicamente para elas, pois não são um vetor perigoso. Pego no telemóvel e vou ver se há novidades desde a noite anterior. Ainda nada. Os números de hoje ainda não saíram, os velhos continuam a não querer respeitar as regras e os decretos-lei do estado de emergência são os mesmos. Há um mês atrás tinha pena dos chineses e seguia as notícias com uma certa leveza, alheada do que me estava prestes a bater à porta. Agora tenho o coração nas mãos sempre que vou ao site da RTP. Tirei a roupa lavada do roupeiro e vesti-me. À porta de casa, enfiei umas calças que usara no dia anterior. A roupa que anda na rua, já não tem autorização para entrar no quarto ou sentar-se no sofá. Tomei o meu café, arrumei o almoço na lancheira (neste momento, não me atrevo a comprar comida que não tenha sido feita por mim) e, à porta, calcei os sapatos e vesti o casaco. Imediatamente antes de sair, desinfetei as mãos e as chaves. Não toco no corrimão da escada do prédio quando desço e, se me cruzar com algum vizinho, espero que ele suba primeiro para não estar próxima da sua respiração. Por fim, abro a porta do prédio com a mão envolta na manga da minha camisola. Vou a pé para trabalho. Moro perto e, como fecharam o ginásio, não preciso de usar o carro de todo no meu dia a dia. Mal chego ao trabalho, pouso a mala e começo por lavar e desinfetar bem as mãos. Visto o pijama cirúrgico como normalmente faço. No entanto, nos dias que correm, sou forçada a também incluir na farda uma bata, uma máscara e luvas descartáveis de látex. Andar com o cabelo solto deixou de ser uma hipótese. Passado pouco tempo, a minha colega abordou-me com novidades. Novos casos e novas mortes. Vemos os casos em Itália, as mortes, a exaustão dos médicos e enfermeiros, o inferno que nunca mais acaba. Inspiro fundo com dificuldade e sinto um aperto no coração. Porém, racionalmente, lembro-me que os valores em Portugal continuam um pouco mais baixos que os previstos matematicamente. Pode ser que isso seja um bom sinal. Há que manter a esperança. Abrimos a porta e montamos a nova receção. Apenas entram animais. As pessoas têm que aguardar na rua e têm o nosso álcool gel à disposição. Um atendimento muito diferente do que estamos habituadas. Já passaram alguns dias e ainda me sinto pouco à vontade. No entanto, é imprescindível. Assim, temos segurança para continuar a servir. De seguida, vamos tratar do cão que temos internado com pancreatite severa. Quando me aproximei, mordeu-me a mão e rasgou-me a luva. “O cabrão parece estar melhor!”. Enquanto me sinto irritada por ter dificuldade em tratar do meu paciente porque ele não pára de ser uma pequena piranha, esqueço, por momentos, a minha constante preocupação por todos os membros da minha família, amigos veterinários a trabalhar em zonas de maior risco e nos meus amigos enfermeiros e médicos que estão na frente de batalha. A preocupação persegue-me durante dias a fio, algo que nunca tinha experimentado. Preocupação pelos meus, pelo meu posto de trabalho, pelos animais que precisam de todos nós. Por vezes a razão foge e entro num estado de quase pânico. A incerteza do dia de amanhã é exaustiva ao ponto de ter o meu horário de trabalho reduzido para metade e, mesmo assim, conseguir chegar cansada ao final do dia. Ao terminar o turno, passo os casos clínicos e dou dois dedos de conversa às minhas colegas. Os temas acabam por rondar sempre o mesmo: infetados e mortes, os putos que dão conta do juízo, o isolamento que pode levar à loucura e a vitória de encontrar uma garrafa de álcool na loja chinesa ou no Pingo Doce. Antes de sair da clínica, lavo as mãos e desinfeto-as pela milionésima vez e limpo o telemóvel com desinfetante. A caminho de casa, decido passar pela farmácia. Imediatamente lembro-me que deveria ter trazido a máscara do trabalho, mas já não tenho paciência para voltar para trás. Na farmácia vendem à porta fechada, o que torna o atendimento mais lento. Para além disso, a afluência é maior que nunca. Esperei cerca de 40 minutos até ser atendida. Durante este tempo, fiz um esforço consciente por me manter a uma distância de cerca de 1-2 metros da pessoa à minha frente e atrás de mim. Ouvia as pessoas a tossir à minha volta e senti-me extremamente insegura e desprotegida sem a minha bata, máscara e luvas. Nunca pensei experimentar em plena luz do dia em Vila Nova de Santo André, numa fila para a farmácia, o mesmo que sentia à noite, sozinha, numa rua vazia no centro de Lisboa. Ao chegar a casa, despi-me à porta, desinfetei as solas dos sapatos com lixívia e as mãos com álcool gel, coloquei a roupa imediatamente na máquina de lavar e fui tomar banho. Ao jantar, como era dia do pai, combinamos encontrar-nos por videochamada, uma vez que era impossível estarmos juntos como habitualmente. Ao despedir-me dos meus pais, irmã, cunhado e sobrinho, senti um aperto doloroso no estômago e na garganta ao lembrar-me que não fazia a menor ideia de quando poderíamos estar juntos novamente. Ao deitar-me, ensopo as mãos com Biafine para tentar travar a comichão e borbulhas da pele massacrada de tanta lavagem, desinfeção e látex. Ao adormecer, faço um esforço para não pensar. Estou farta de insónias. Suspiro e relembro que já passou mais um dia, logo menos um dia falta no futuro que desconheço.
20/03/2020